As crianças que falam mal. - Um problema de articulação ou linguagem?

falando.jpgCrianças que falam mal: um problema de articulação ou de linguagem?

Geralmente, até aos 5 anos de idade, as crianças vão “aprendendo” gradualmente a produzir e a utilizar todos os sons da sua língua. No entanto, para algumas crianças, este domínio da sua língua não ocorre de forma espontânea nem dentro da faixa etária esperada, sendo comum ouvir expressões como “ não articula bem”, “parece que a língua está enrolada” ou “não consegue pôr a língua no sítio”.

Com o avanço dos estudos linguísticos clínicos, os conceitos acerca das alterações da fala sofreram algumas alterações. A partir da década de 50, as dificuldades da fala que eram vistas como um problema motor/articulatório, passaram a ser denominadas como distúrbios articulatórios funcionais. As alterações na fala das crianças eram diagnosticadas e tratadas como se tivessem como causa apenas um problema fonético-articulatório (de natureza anatomofisiológico), ou seja, um problema relacionado com a função, isto é a fisiologia, dos orgãos anatómicos envolvidos na produção de fala (lábios, língua, etc.), frequentemente decorrentes de alterações miofuncionais advindas de hábitos orais nocivos. Estudos posteriores comprovaram que as alterações da fala eram maioritariamente problemas de linguagem de nível fonológico, ou seja, no nível responsável pela organização mental dos sons de uma língua. Desta forma, a intervenção terapêutica que era baseada essencialmente na estimulação da motricidade orofacial, de forma a adequar a função das estruturas anatómicas que comprometiam o desempenho da criança, passou a utilizar critérios psicolinguísticos, decorrentes de teorias fonológicas, promovendo assim a reorganização do sistema fonológico da criança.

Desta forma, podemos distinguir dois conceitos para caracterizar as dificuldades de fala observadas nas crianças:
  • a perturbação articulatória, que é uma dificuldade em produzir os sons da língua pela incapacidade motora/articulatória, relacionada com alterações das estruturas anatomofisiológicas que intervêm na produção de fala; e
  • a perturbação fonológica, que é uma dificuldade em produzir e organizar os sons da língua. As crianças com perturbações fonológicas apresentam dificuldades na organização mental e não necessariamente no nível articulatório. No entanto, estes desvios podem coexistir com dificuldades no nível articulatório. Os critérios que permitem diagnosticar uma perturbação fonológica têm como base não só o levantamento do sistema fonológico da criança, como também a identificação de alguns critérios de exclusão tais como a não apresentação de alterações de audição, de motricidade orofacial, inteletuais, entre outras. Apesar disto, na prática clínica, verifica-se frequentemente que as alterações de perceção auditiva têm consequências no sistema fonológico da criança, podendo encontrar-se mantidas as capacidades articulatórias. Nessas circunstâncias, a limitação auditiva reside na capacidade perceptiva, isto é, na capacidade de processar/tratar a informação auditiva e não na competência anatomofisiológica do aparelho auditivo. Desta forma, cabe ao Terapeuta da Fala, avaliar e distinguir a natureza das alterações observadas: articulatória ou fonológica, com o objectivo de realizar um diagnóstico mais assertivo e assim planear uma intervenção mais dirigida e eficaz.
Nota: Apesar de, no presente artigo, o termo “fala” ter sido empregue sem nenhum tipo de conotação técnica, na literatura especializada, o termo “fala” remete exclusivamente para aspetos relacionados com a produção articulatória/motora e não cognitivo-linguística (distinção abordada no artigo intitulado: “Linguagem e Fala – falaremos da mesma coisa?”).